Sem nenhuma sombra de dúvidas os dez mandamentos são icônicos, estando representados em diversas sinagogas como decoração. Aqui na CIP tem seu espaço central sob o Aaron haCódesh. Seu conteúdo é conhecido totalmente, ou pelo menos parcialmente, por quase todos os judeus e não judeus, tendo diversos conceitos muito universais.

No entanto, poucos conhecem o capítulo 19 do livro de Vaicrá. Bem no centro deste terceiro livro da Torá que indica aos cohanim, aos sacerdotes, e ao povo todas as leis de sacrifícios e de pureza, nos encontramos com um capítulo que deixa de lado todas as diretrizes de como realizar os sacrifícios, que animais são considerados aptos, em que momento do dia se realiza e entre outros detalhes. Para deixar espaço e se focar em outro aspecto de aproximação com Deus, função principal dos sacrifícios.

O capítulo 19 começa dizendo que devemos ser santos, porque Deus é Santo. Poderia acompanhar o leit motif da maioria do livro, e indicar níveis ainda mais elevados de purificação, mas muito pelo contrário, nos encontramos com responsabilidades e deveres do âmbito social.

Aqui encontramos a proibição de defraudar os companheiros, as leis de deixar parte da colheita para os pobres, de não atrasar o pagamento de um empregado, de não insultar o surdo e não agir em nome da vingança. Está também um conceito que se torna central na literatura rabínica: que a justiça seja imparcial em relação aos pobres e ricos.

É o olhar para o social que nos transforma em kedoshim, em santos, e que nos aproxima a sermos mais parecidos com Deus. Por diversas gerações, os sábios vêm buscando quais seriam as mitsvot mais importantes e quais seriam os mandamentos principais da vasta coleção de leis. Alguns já opinaram pela Talmud Torá, estudo, que é o que leva o conhecimento aos demais, outros opinaram pela tsedaká, a justiça social, dentre diversas outras opiniões.

Existe uma famosa história no Talmud (Tratado de Shabat 31a) do sábio Hilel, que é confrontado por um homem que se converteria ao judaísmo se ele pudesse explicar a essência da Torá enquanto estava em um pé só. Shamai, sábio da mesma época já havia expulsado o homem quando recebeu a mesma proposta. Hilel, com sua sabedoria e paciência diz algo muito similar ao que encontramos no texto desta semana: “Se algo é odioso para você, não o faça ao outro, isso é toda a Torá, o resto é comentário, vá e aprenda.”

Em nossa parashá encontramos “Ame ao teu próximo como a ti mesmo”, veahavtá lereachá camocha. Entre esse conceito e o de Hilel, talvez completássemos todo o ciclo de possibilidades de relações entre os seres humanos.  Talvez por isso o texto desta parashá, e especificamente o capítulo 19, deveria ser muito mais explorado e muito mais difundido.

Em uma época da história, os dez mandamentos já fizeram parte da liturgia diária. Deixaram de fazer para que não fosse dito que a Torá e o judaísmo se resumiam a esses dez conceitos. Devemos compreender que as relações humanas são o que nos aproximam ou nos afastam de Deus, de sermos divinos e santos.

Compreender que não atrasar o salário de um funcionário, dependente disso para viver, é o que nos faz ser sagrados. Entender que buscar o equilíbrio de possibilidades entre ricos e pobres é o que nos faz ser santos. Que possamos entender com todo nosso ser que para sermos um povo santo, devemos ir além dos dez mandamentos, além da nossa relação direta com Deus, através dos sacrifícios ou da reza, e nos aprofundar nas nossas responsabilidades sociais.

Shabat Shalom

Rabina Fernanda Tomchinsky-Galanternik

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