Muitas vezes parece que a ortodoxia seria um judaísmo mais antigo ou mais autêntico ou, pelo menos, o mais fiel à alguma tradição bem caracteristicamente judaica.

 
Porém, a parashá da semana – e especialmente a forma que ela foi lida na tradição judaica de séculos – mostra que não é bem assim.
 
O relato principal da leitura da Torá desta semana conta que Côrach, Datã e Avirã contestaram a autoridade de Moisés e de Aharon e, em resposta, foram engolidos pela terra junto com as 250 pessoas que os apoiaram.
 
Como temos explicado e demonstrado reiteradas vezes, o judaísmo não é a religião bíblica, é sim a tradição que surge de algumas leituras particulares da Bíblia. Assim, os judeus jamais apedrejaram filhos malcomportados como indica a Torá e cobraram juros proibidos pela Torá. Há mais de dois mil anos não fazem sacrifícios, não perseguem amalek, se movimentam no Shabat de forma contrária à literalidade da Torá, que proíbe qualquer movimento no dia, celebram o ano novo no sétimo mês bíblico (e não no primeiro), jejuam em Iom Kipur e seguem à risca centenas de práticas estabelecidas cerca de dois mil anos depois da Torá escrita.
 
Quem estabeleceu esse judaísmo que conhecemos, praticamos e discutimos há dois mil anos foram os genericamente chamados de “sábios do Talmud”. A origem de suas interpretações, adaptações e mudanças é uma das bases das controvérsias entre os movimentos modernos. Todavia, todos concordamos que eles não seguiram à risca a literalidade da Torá nem apenas a palavra escrita. Pelo contrário: a maior parte de nosso judaísmo se origina e se desenvolve a partir das leituras particulares e controversas deles e muito além. Todas as nossas rezas, o Bar-mitsvá e os ritos de casamento, luto e cashrut são alguns exemplos do que desenvolveram esses sábios muito além da Bíblia.
 
Todos concordamos também que o que mais fizeram esses sábios foi discutir, não concordar. O Talmud é principalmente uma obra de discussões que muitas vezes, talvez a maioria, acabam abertas.
 
E como lidaram nossos sábios e responsáveis pela criação da maior parte do judaísmo com a parashá que relata o combate violento contra a discussão e o sufoco da divergência?
 
Estabeleceram que existem dois tipos de controvérsia: a que honra o céu e a que não. A segunda é a que só busca poder e, portanto, destrói e se autodestrói, segundo eles. Atribuíram esta a Côrach, da parashá.
 
Já a primeira amplia a verdade e, assim, honra o céu e é premiada com sua perpetuação. Atribuíram esta controvérsia a eles mesmos. Sim, os sábios do Talmud deram a volta no significado da parashá da semana e concluíram dela que a divergência é tão boa que revela a divindade. Em outra passagem disseram que o próprio Deus disse que as diversas opiniões dos sábios em disputa, todas juntas, representam as palavras divinas.
 
Ortodoxia significa opinião certa, caminho correto, como que sugerindo que existe só́ um. Para o Talmud, essa expressão contradiz o divino. O Talmud combate qualquer pretensão ortodoxa de caminho único.
 

Shabat Shalom.
Rabino Ruben Sternschein